"O bom é ser inteligente e não entender. É uma bênção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo."
Clarice Lispector

julho 02, 2009

Sobre as Perdas

      Sim, existem perdas na vida que são irremediáveis, sonhos que desaparecem a um milímetro do toque das mãos.
      Havia um bolo sobre a pia de uma casa desconhecida, delicioso aos olhos tanto que virou vontade úmida. Feito por minha mãe, em algum lugar por ali só no meu saber. Inteirinho, coberto com um chantilly que chegava a dar paz no coração, recheado com um creme de cor intensa e doce, onde se podiam ver uns pedacinhos de nozes. Mas minha mãe estava por ali e a casa não era minha e o bolo estava inteiro. E de repente, no espaço de um olha pra lá olha pra cá, eis que um pedaço se foi.
     Sim, chegou a minha hora. Ela ainda estava ali mas eu estava livre para seguir em um pedaço, desde que o pedaço tivesse um tamanho decente. Cortei bem devagarzinho, coloquei num pratinho de porcelana branca com o cuidado de recolher, para dentro do prato, as migalhinhas que iam ficando para trás. E, com o prato na mão, saí da casa para comer em paz como uma alucinada e sem espectadores. Alguns passos fora da casa e me perco no equilíbrio, o bolo cai. Como? E agora? Eu ia ter que voltar para pegar outro, ia ter! Mas iam pensar que eu comi e estava repetindo, quem ia acreditar que o bolo caiu sem testemunhas? Mas eu tinha que fazer e fui e fiz e logo já estava lá fora de novo com outro pedaço, que também correu para o chão e de lá me olhou debochado!
     Tudo bem , ela agora estava ao lado da pia me olhando. Enfrentei. O bolo já no finalzinho. Peguei um pedaço bem pequeno, para não ser a última, sem olhar para os lados. E fugi para o meu tão sonhado momento de glória. Nem cheguei a atravessar a porta, tropecei em alguma coisa e o bolo foi embora voando com prato e tudo. Acostumada com o sofrimento de viver e desejar, fui para o último pedaço com um pouco de pressa. Dessa vez ia comer ali mesmo, no prato do bolo mesmo, sem tirar da pia. Ia comer! Com as mãos mesmo peguei a derradeira fatia e o aroma de baunilha me invadiu, e se perdeu numa campainha estridente.
- Bom dia amor! Te acordei? Só liguei para dizer que te amo e estou com saudades...
Nunca mais!
      Entretanto, a Willemsen fica a apenas um quilômetro da minha casa e lá tem um de chocolate com morangos...!!

2 comentários:

Amor, paixão e outros textos disse...

sua prosa tem um tempo de narrativa diferente.... vc consegue criar imagens inteiras de sentimentos, sensações, abstrações e coisas concretas como há muito não vejo.... quem ler o seu texto parece que está numa montanha russa... o texto começa lento, poucas ações, poucos movimentos... vai aumentando aos poucos,,,, chega ao ápice... e desce como uma roda sem controle descendo a ladeira até bater em algo, por vezes se destrói pelo impacto, ou mesmo após um grande baque permanece inteira, completa, quase indestrutível.....

Anônimo disse...

Ao ler esta crônica, algo estranho aconteceu, pois ela apesar de retratar um fato cotidiano, ela me prendia muito a atenção. Mas porquê? Talvez pela forma como vão sendo plasmadas as imagens em nossa retina mental, vai-se criando uma expectativa de: qual será o próximo movimento?

Fiquei vidrado! Já reli em momentos distintos e fico vidrado de novo, fico rindo e toda vez que leio eu rio de novo... Que doideira!! É a riqueza de detalhes, são as composições inusitadas... é como se fosse o teto de um alcazar, uma porcelana chinesa, onde na medida em que se explora os detalhes da Obra, surgem novos elementos...

Existem instantes de pequenas angústias que traduzidas para a forma escrita ganham outra dimensão... É como passar um filme em câmera lenta de nossos movimentos internos, muito interessante... A observação de si mesmo é fundamental para reproduzir "um sonho" com tanta riqueza de detalhes...

Adorei o bolo que te olha debochado, como se ele tivesse vida própria e que resistisse a querer ser devorado! Mas até eu se fosse o bolo ia rir de você, de tanto tropeço! rsrsrs

E o final foi surpreendente... Eu estava aqui na torcida para você finalmente comer seu pedacinho de bolo, mas não era mesmo o seu dia...

Mas depois desta dica, quando eu visitar Petropólis, com certeza vou dar um pulinho na Willemsen.